terça-feira, 14 de abril de 2009

Vidas alternativas

Bonequeiro
Disse que se chamava Carlos. Esse nome tão simples como a sua expressão, como os olhos sorridentes e as roupas que vestia. Talvez tenha sido com essa simplicidade que também se deu a conhecer, que se aproximou apenas por isso, por falar. Numa amizade instantânea. E foi entre passos de forró e samba que se foram trocando estórias. Porque afinal estávamos no Brasil, e fazia calor, e dançava-se, até cair, até depois de cansar, já que depois do cansaço vem uma alegria inesgotável. E aí è tempo de continuar, continuar com as conversas, com os risos, com os encontros, deixando-nos levar, efémeros, como vento. Por entre gente e mais gente. Encontrar pessoas do mundo, holandeses, argentinos, um alemão que viveu em Manaus e fala “brasileiro” que se junta aos nossos passos até chegarmos a um pequeno bar hippie, de palha, chamado “fortaleza do Cachorro da Mão Quebrada” onde fomos enfeitiçados com a voz suave de uma linda rapariga argentina a cantar o reggae mais envolvente que já ouvi, até o sol nascer, sentados no chão.

Mais encantadora terá sido a sua história: há 11 anos atrás deixou a sua terra natal, Bogotá, Colômbia, e partiu. De bicicleta. A América do Sul, 11 anos, 20.000 quilómetros. Do mundo, não pediu sofregamente: O dinheiro para viver, muito conhecimento. Tentativas de viver uma vida “normal”, informática e psicologia. Mas de novo arrastado para lutas sociais, o “movimento dos sem terra”, o teatro de bonecas que fazia pelas cidades, mais tarde abandonado, e, porque são mais leves, os brincos e anéis que passou a vender de praia em praia.

Foi com ele que soubemos que a Punta del Este, no Uruguai, é um dos melhores locais para vender artesanato, que se dança mais tango no Brasil que na Argentina, que música oficial do estado do Maranhão é o reggae, que com o pico de inflação Argentina se criou um mercado sem Moeda em Buenos Aires, onde tudo funcionava por trocas e operaram as leis mais primordiais da economia, e que há comunidades no Brasil deliberadamente isoladas, onde os habitantes se recusam a viver com ligações à civilização, nem mesmo medicamentos, onde as crianças podem morrer de constipação, e que, todos os anos, todas as comunidades se encontram num grande evento no Brasil, a ENCA (Encontro Nacional de Comunidades Alternativas), e que é tão fácil apenas ir, apenas chegar. Que é só isso. E sem sair do chão, acabámos por viajar por lugares tão belos e místicos como o seu nome: Jericoacara, Paraty, Bogotá… E já não sei se quero partir, se quero ficar, se quero fugir…

Mas, com a mesma simplicidade, ele lá partiu na sua bicicleta, para um dia reaparecer da mesma forma numa rua de Barcelona, de Milão, de Ljubljana, de Évora, ou qualquer estrada ou monte até todos perderem o nome e serem só parte de um mundo que não é América, não é Ásia, e é apenas a mesma memória de uma grande estrada que se conhece do princípio ao fim.


Bookshop
Depois de algum tempo passar, porque o tempo não interessa ali, ali tudo é eterno como as palavras e as obras, lá nos olhou de novo. Com a frase à porta dizendo “O difícil é aprender a ler, o resto está escrito”, substituindo um antigo “Na dúvida, não entre” não fingia o seu desinteresse pela opinião dos outros. Ela vive apenas para as palavras. O Napolitano já tinha resolvido sair e parar de se gabar dos seus intelectualismo e bom gosto literário e deu-nos oportunidade de falar um pouco com ela. Tivemos sorte porque gostou de nós. E sei que gostou porque não nos respondeu torto, como não teria qualquer problema em fazer, se achasse que a estaríamos a empatar. Tirei-lhe umas fotos à livraria para oferecer à Paula. Eu sei que, se ela realizasse o seu sonho de abrir uma livraria feminista, sairia algo assim. Agora só falta mandá-las no correio para a Suécia.

Orgulhosa, contou a sua história. “Cheguei a Pipa apenas com 10 livros, há 10 anos, tudo o que tenho ou foi dado, ou trocado”. E hoje tem uma livraria lindíssima num dos recantos da vila. Vive lá, num sofá, com sua gata, que não está habituada ao carinho. Os livros, podemos alugar, comprar trocar, ou negociar.

“Visita o meu blogue” Disse ela, orgulhosa. Fiz um filme do incêndio que tivemos na livraria. Chama-se “arte em chamas”. E riu-se, da ironia do título.

10 reais cada livro. Escolhi dois. Ma só depois percebi que só tinha dinheiro para pagar um. “Está louca? Leva os dois livros sim. Depois me paga.” “Mas eu só devo volto daqui a um ano!”, “Não faz mal, depois traz-me um Livro.”

Estrela
O seu amigo tinha apanhado um peixe gato gigante: um homem de rastas e orelhas furadas. Na areia escaldante e peixe morto na mão. Aproveitou a deixa do nosso olhar para nos mostrar a sua arte. “Nós não temos dinheiro. Isto é tudo o que temos: 30 cêntimos”. E quase a cantar, nos largou uma lengalenga.

"Então eu vou fazer algo para vocês. Eu sou do Chile e sou vagabundo. Corro o mundo só eu e eu. Para nunca mandarem no que está cá dentro (apontou para a cabeça). Tinham coragem de largar assim, largar tudo? (fez uma estrelinha em arame em três tempos). Quando olharem para isto, olhem para o céu e procurem a estrela mais brilhante. E aí lembrem-se de não ter medo de seguir os vossos sonhos. "

E deixou-nos as estrelinhas, pegou na moeda, e seguiu com o seu amigo e o peixe gato, descalços, pelos caminhos da praia.

2 comentários:

Primas disse...

uma doce melancolia... foi o que senti ao ler! ´"viajar é uma desordem momentanea da vida", disse o Miguel e eu registei.

gosto dessa desordem... gostava que se instalasse na minha vida! e gosto tanto das histórias diferentes, das vidas alternativas... que alimentam o meu imaginário e me fazem admirar quem tem a audácia de construir de seguir o caminho simples!

fico como tu...não sei se quero ir, se quero ficar... se quero fugir... sei que também gostava de ter uma livraria, mas com salão de chá :)

saudades!

Papoila disse...

adoro as tuas histórias! Já sabes onde queres ir?!

Eu ainda continuo atordoada...